sexta-feira, 7 de dezembro de 2012

Vida Líquida - Bauman


Viver neste mundo sempre mais complexo está se tornando uma tarefa
difícil a se realizar. As mudanças rápidas e radicais que aconteceram
nas últimas décadas – e continuam acontecendo – estão nos deixando
sempre mais desnorteados e, até mesmo, perdidos. Buscamos
uma firmeza que não encontra mais amparo naqueles valores considerados
eternos. Sonhamos um mundo no qual o futuro é difícil de
ser vislumbrado. Sentimos a dificuldade de abrir mão da velha aparelhagem
moderna de idéias seguras e pré-formadas que, por séculos,
orientavam nossos passos. Talvez seja, como profetizava, no século
passado, o filosofo francês Jean Paul Sartre, o medo de viver até as
mais profundas conseqüências a nossa liberdade. De qualquer forma,
porém, a humanidade sente uma geral dificuldade de encontrar
pontos de referências que possam garantir-lhe serenidade. O instinto
de sobrevivência, que necessita de segurança, bate toda hora contra o
muro de um mundo que se tornou inseguro. Percebemos que novos
atores estão passando no palanque da história, mas não conseguimos
detectá-los, tão rápida é a passagem deles.
Uma atitude tipicamente humana consiste em pensar, para compreender
aquilo que está acontecendo. Neste mundo das mudanças
rápidas e, às vezes, imprevisíveis, também esta atitude parece ter sido
afetada inexoravelmente. Apesar disso, parar para refletir sobre estas
mudanças é o objetivo do presente artigo. Tentaremos a busca de
respostas que possam nos ajudar a interpretar este mundo tão complexo,
folheando as páginas de um dos autores da atualidade que há
décadas está oferecendo idéias e chaves de interpretação plausíveis:
Zygmunt Bauman.

História de SANTA TERESA



O bairro de Santa Teresa nasceu nos arredores de um convento no Morro do Desterro, no Rio de Janeiro, no século 18. O bairro ocupa uma colina no coração da cidade e parece ter parado no tempo, mantendo há dezenas de anos aspectos preservados do Rio Antigo e guardando uma história em cada esquina.

Escritores e artistas sempre foram atraídos por Santa Teresa, seduzidos por seu charme e por suas riquezas arquitetônica e cultural, visíveis aos olhos e ao coração. A arte exibida nos muitos ateliês que tomaram conta do bairro, encontra seu reduto em Santa, como preferem chamar os apaixonados pelo local. Tudo o que existe e se sabe sobre Santa Teresa é também um pouco da história do Rio. Mas para o visitante parece um local à parte, com características próprias.

As ruas estreitas e sinuosas por onde passam os velhos bondes, os únicos que ainda circulam em todo o Brasil, são mais uma peculiar atração do bairro. Os charmosos veículos começaram a circular no século passado, movidos por tração animal e posteriormente por eletricidade. Remanescentes de uma época romântica, foram tombados como patrimônio histórico e ainda passeiam por trilhas perfeitamente preservadas, levando o visitante a uma releitura do passado.
O bairro de Santa Teresa surgiu a partir do convento de mesmo nome, no século XVIII. Foi inicialmente habitado pela classe alta da época, numa das primeiras expansões da cidade para fora do núcleo inicial de povoamento, no Centro da cidade. Surgiram, então, vários casarões e mansões inspirados na arquitetura francesa da época, muitos dos quais estão em pé até hoje. O bairro de Santa Teresa recebeu ao longo de toda sua existência muitos imigrantes europeus.
Por volta de 1850, a região foi intensivamente ocupada pela população que fugia da epidemia de febre amarela na cidade. Por ficar num local mais elevado, a região era menos atingida pela epidemia do que os bairros que a circundavam.
Em 1872, surgiria o bonde que se tornou o símbolo do bairro, subindo a Rua Almirante Alexandrino. Inicialmente, o bonde era verde, mas passou a ser pintado de amarelo após reclamações de moradores que diziam que o bonde "sumia" em meio à vegetação do bairro[. O bonde vai do bairro ao Centro da cidade através dos Aqueduto da Carioca desde 1896, quando fez sua primeira viagem.
Com o tempo, Santa Teresa perdeu seu status de bairro nobre, mas tornou-se, ao longo dos anos, um bairro de interesse cultural e turístico.
O bairro possui uma das mais antigas associações de moradores do Rio de Janeiro. A Associação de Moradores e Amigos de Santa Teresa foi proposta pela primeira vez em manifestação pública e através de abaixo-assinado, na Praça Odilo Costa Neto, na então famosa Festa Junina de Santa Teresa, em junho de 1978. Seu registro de fundação é de 10 de julho de 1980.
A partir de manifestações organizadas, os moradores conseguiram a preservação do sistema de bondes histórico, através do tombamento e de cobranças constantes do poder público pela liberação de verbas para os bondinhos. Porém, com o trágico acidente ocorrido com o bonde em 27 de agosto de 2011 que matou seis pessoas, o governo estadual, responsável pela operação do bonde, resolveu paralisar temporariamente a sua circulação, até que fossem feitas obras de modernização do sistema.

O Filho Eterno, de Cristóvão Tezza


O Filho Eterno, de Cristóvão Tezza, foi publicado na categoria de "romance brasileiro", mas é um texto escancaradamente autobiográfico. 


Como o protagonista de seu romance, o autor tem um filho com síndrome de Down. O livro não disfarça o caráter de acerto de contas do escritor com seu filho – ou, melhor dizendo, consigo mesmo no papel de pai desse filho. Ainda assim, Tezza rejeita o rótulo de memorialismo para ficar com o de romance: a narração é toda em terceira pessoa, por exemplo.

A obra se afigura como uma brilhante reflexão sobre a necessidade e a importância da ação do tempo para operar o ciclo da aturação/amadurecimento. Este ciclo se justifica porque plasma duas variáveis significativas de um problema que a crítica literária tem, ao longo de sua história, tratado de forma dicotômica: o narrador e o autor, o sujeito real e o personagem, o escritor e o protagonista, ou ainda, quaisquer outros aportes demonstrativos que se queira dar para separar o homem que escreve da ficção que ele escreve. Assim, o romance abre caminhos inovadores para que se discuta a tão famigerada relação entre vida e obra, autobiografia e ficcionalidade, como se a ficção pudesse, de per se abdicar da história ou como se a realidade não pudesse adentrar os labirintos da subjetividade vital por considerá-la, aprioristicamente, o reino positivista da neutralidade.

Dividido em vinte e cinco capítulos, não numerados, o romance é introduzido por duas epígrafes significativas: a primeira, de Thomas Bernhard, apresenta o conflito entre o desejo pela descrição fiel da verdade e o resultado dessa descrição; a segunda, de S. Kierkegaard, aponta a reflexão especular entre pai e filho,
tema de que se ocupa o livro em suas duzentas e vinte e duas páginas: as vicissitudes, o calvário e as amarras de um jovem escritor ao receber a notícia de que
seu primeiro filho era portador da Síndrome de Down e a peregrinação vital em torno desse fato até sua liberta aceitação.

Antes mesmo de iniciar a leitura, somos informados de que o romance tem como ponto de partida as memórias do escritor Cristovão Tezza, e, ele mesmo, na epígrafe, deixa claro que memórias são essas. Uma história baseada em fatos reais que não tem pretensão de ser a verdade. É a história do relacionamento de pai e filho – e, pela orelha do livro, somos informados de que se trata de um relacionamento com "dificuldades, inúmeras, e as saborosas pequenas vitórias". Além disso, trata-se de um "livro corajoso" – o escritor é considerado corajoso ao relatar parte de sua vida, ao expor sua família e sua intimidade.
 

O Filho Eterno é uma narrativa seca de desencantamento, em terceira pessoa, onde os personagens não têm nome, com exceção do filho, Felipe, e são chamados de "ele", "o pai", "a mulher", "a mãe", "a filha", "a irmã". Mesmo Felipe frequentemente aparece como "o filho" em contraposição ao "pai". Não encontramos o lugar-comum, o apelo ao sentimento de pena e empatia, e, isso é uma das qualidades de uma história que prende o leitor por não fornecer respostas e soluções óbvias, pelo contrário, a surpresa é uma constante durante a leitura. Percorre-se a trajetória do personagem pai e, dentro de sua história, acompanha-se a trajetória do personagem filho, Felipe. O treinamento neurológico nos primeiros anos de vida do filho é contrastado com o 'treinamento' do pai em relação às tentativas de publicar seus livros e as recusas das editoras:

Eu também estou em treinamento, ele pensa, lembrando mais uma recusa de editora. A vida real começa a puxá-lo com violência para o chão, e ele ri imaginando-se no lugar do filho, coordenando braços e pernas para ficar em pé no mundo com um pouco mais de segurança(p. 130).

O crescimento e o desenvolvimento do filho são percebidos pelo pai nas representações de papéis sociais que o filho se esforça em cumprir (p. 211). Ao mesmo tempo, o pai descobre a alegria que a rotina traz e a tranquilidade conquistada com papéis sociais como "o professor universitário", "o escritor".

"
O pai começa a descobrir sinais de maturidade no seu Peter Pan e eles existem, mas sempre como representação" (p. 218). O espelho no qual ambos, pai e filho, se veem é o espelho que reflete a representação dos papéis sociais. A percepção de mimetismo social no filho não está muito distante dos papéis que o pai é solicitado a cumprir socialmente na universidade, na família, na escola do filho, no campeonato de natação e na apresentação de teatro do filho. A dificuldade do pai é tão grande quanto a dificuldade do filho. A criança que vive eternamente no presente aprende a responder ao que é solicitado dela socialmente. O pai provisório, que só pensava em viver o presente, também aprende. E aqui é revelado o escritor por trás da narrativa. A sutileza ao contar os episódios na vida do pai e do filho é alcançada no contar da história, pois não há momentos de avaliação e reflexão em que paralelos são explicitamente estabelecidos. Esse trabalho é reservado ao leitor. 

Há no romance de Tezza a preocupação em não deixar o leitor "morrer de repente", ou não abandonar o texto.
 

A narrativa de
 O filho eterno inicia sob o signo da construção, melhor dizendo, de duas construções: do pai-narrador-escritor e do filho-personagem-narrado.
Há uma partogênese significativa envolvendo o nascimento e criação do filho e deslocando-se para o nascimento do escritor e o ato da escritura. As marcas vitais conjugam-se nas palavras do próprio autor: “romance brutalmente autobiográfico”. A despeito das dificuldades romanescas atribuídas ao gênero autobiográfico, o livro furta-se ao mero assédio confessionalista porque o autor – experiente e exigente quanto às técnicas literárias – soube optar pela utilização de um ponto de vista revelador.

Narrando em 3ª pessoa, ao invés da 1ª pessoa do singular, Tezza – com esse hábil expediente de foco narrativo – forjou uma nova indumentária para o romance autobiográfico e, muito embora os poros da vida refluam do corpo do texto, a essência do mesmo – sua alma – ainda continua sendo a ficção.

O enredo gira em torno de duas personagens principais: pai e filho. As outras personagens apresentadas no romance são secundárias, inclusive a mãe, que apesar de ser a primeira personagem apresentada pelo narrador através de sua própria fala “
- Acho que é hoje – ela disse.” (pág. 9), é pouco mencionada durante a obra. O narrador utiliza os pronomes “ele” e “ela”, para se referir aos pais e à irmã de Felipe, o único personagem com nome declarado. Quando se trata da relação de afeto com um filho, e principalmente, quando este apresenta uma anomalia, espera-se que a figura da mãe tenha destaque, porém, no romance é a paternidade que é enfatizada.

A abertura do romance dá conta da voz da esposa anunciando ao pai a chegada iminente do filho, ao mesmo tempo em que vai construindo a figura desse pai-narrador, através de um discurso amparado em termos que expressam dúvidas, incompletudes e indefinições: “Alguém provisório, talvez; alguém que, aos 28 anos, ainda não começou a viver. [...] ele não tem nada, e não é ainda exatamente nada”. (p. 9). Descreve-se como um “filhote retardatário dos anos 70”, e se vê como um poeta cafona, gorado em sua profissão, sustentado pela esposa que sobrevive de aulas particulares e revisões textuais de “teses e dissertações de mestrado sobre qualquer tema” (p. 12).

O Pai é personagem introvertido, ansioso, que tem dificuldades para demonstrar seus sentimentos. Um homem de vinte e oito anos, que bebe e fuma compulsivamente. Vê a solidão como um projeto de vida, para assim demonstrar sua aversão à sociedade, e a literatura como fuga da realidade. Pode ser definido como: “
... o eterno observador de si mesmo e dos outros. “Alguém que vê, não alguém que vive.” (pág. 98). Um militante sem causa, um escritor sem projetos realizados que não consegue viver de seu próprio trabalho.

Felipe é apresentado pelo narrador pelas características de um portador de síndrome de down: “
... algumas características... sinais importantes...vamos descrever: Observem os olhos, que tem as pregas nos cantos, e a pálpebra oblíqua...o dedo mindinho das mãos, arqueado para dentro...achatamento da parte posterior do crânio...a hipotonia muscular...a baixa implantação da orelha e...” (pág. 30). Segundo o pai: “é uma pedra silenciosa no meio do caminho” (pág. 112).

O narrador invade os pensamentos do pai testemunhando todos os acontecimentos de sua vida, de forma invisível está presente em todos os cenários da narrativa, assim expõem ao leitor, os sentimentos, as emoções e as aflições de criar um filho com necessidades especiais em uma época que pouco se sabia sobre a Síndrome.

Ainda no 1º capítulo, após ironizar suas “romantiquices” literárias – publicaria, na Revista de Letras, o poema "O filho da primavera" –, deixa claro que “
um filho é a idéia de um filho”; e que, nem sempre, “as coisas coincidem com as idéias que fazemos delas” (p. 14). Tal inconformismo entre o sonho e a realidade
reflete a via-crucis desse Édipo andarilho: recuando no tempo, há apenas dois meses passados, percebe a relação irônica e mordaz entre uma dissertação corrigida para um amigo, na área de genética, cujo tema versava sobre as características da trissomia do cromossomo 21, a síndrome de Down, popularmente conhecida como “mongolismo”, e o fatídico acaso que o presente lhe reservava: um filho portador dessa mesma síndrome.

O destino não o fez cegar os próprios olhos, mas o narrador admite que a morte do menino seria um alívio e o ódio furioso que o acomete fica explícito quando se nega “
bovino, a ver e a ouvir” (p. 31). Focando a parafernália familiar e hospitalar, característica do nascimento de bebês, o narrador estabelece uma relação com os rituais dos sacrifícios religiosos e aponta o caráter de encenação/representação de papéis tanto dos pais, quanto dos médicos e enfermeiros.

Assim, os primeiros capítulos exploram as reações adversas do pai e marido – “
Eu não preciso deste filho”; “Eu também não preciso desta mulher” (p. 32) – as quais, num crescendo de inconformismo, apelam para registros discursivos dilacerados de vazio e solidão. O menino, que o leitor vem a saber, posteriormente, tratar-se de Felipe, é, no início, designado como “pacotinho suspirante”, “a coisa”, “aquela criança horrível”, “esse”, “simulacro de normalidade”, enfim, nominações que levam o narrador a concluir que é um “escritor sem obra, [...] e agora pai sem filho” (p. 41). Entretanto, a brutalidade com que questiona a “anormalidade” do filho volta-se, especularmente, como reflexão sobre a própria normalidade.

No 7º capítulo, o narrador se detém na discussão científica a respeito das características da trissomia do cromossomo 21, porém as contingências do fato, quando relacionadas ao filho, não o impedem de considerar-se num abismo. Ao reler um poema engajado, de sua autoria, – “
escrito anos antes, numa pensão em Portugal, em seus tempos de mochileiro” (p. 49) – trazido por seu irmão, a pretexto de consolá-lo, analisa-o com olhar crítico, tributa-o como “simulacro de
poesia
” (p. 51). Entretanto, os versos iniciais servirão como uma espécie de mote do destino para iluminar reflexões posteriores: “Nada do que não foi/ poderia ter sido” (p. 50).
A partir da certeza genética a respeito do filho e do ressentido vazio familiar – “
Três estranhos em silêncio. Não há o que abraçar” (p. 66) –, tem início a peregrinação em busca de clínicas especializadas em programas de estimulação e consequentes exercícios de reabilitação. O leitor é informado tanto sobre as deficiências específicas que acometem os portadores de tal síndrome – em termos de visão, audição, tato, linguagem, relações sexuais –, quanto sobre as limitações que os ditos “normais” têm no trato com essas pessoas: “(elas ouvem a palavra ‘não’ milhares de vezes a mais do que qualquer pessoa normal)” (p. 167). Se, didaticamente, há uma descrição de como é possível o processo de auxílio e recuperação de crianças como Felipe, do ponto de vista narrativo, essa didática é amparada e ultrapassada pelas reflexões sobre as relações entre o pai e o filho, o ser e o tempo, o homem e suas circunstâncias, a essência e a aparência, o sentir e o dizer, o acaso e as escolhas, o autor e o leitor, o ato de escrever e a possibilidade de realização. A educação de Felipe é, em contrapartida, a educação do pai em busca de si mesmo. 

No 20º capítulo, ao narrar o desaparecimento de Felipe, faz um retrospecto dessa fuga e, retornando ao momento de seu nascimento, associa e equipara as sensações como se fossem “o sentimento do abismo” (p. 161). A possibilidade da perda do filho permite ao narrador avaliar o valor desta perda: o desabamento provocado pela solidão: “Não se mova, que dói” (p. 161). A relação autobiográfica em
 O Filho Eterno, também se consolida na descrição correspondente ao processo de criação e publicação de outros romances de Cristovão Tezza, como é o caso de Terrorista lírico, Trapo, A cidade inventada e Ensaio da paixão, “o primeiro acerto de contas com a própria vida, antes do filho” (p. 116).

Enfim, quem é esse filho eterno? É Felipe, eternamente menino, na fatídica vivacidade de sua inocência canhestra, ou é o pai – Édipo andarilho – a procurar,
numa encruzilhada sem destinos programados pelos deuses, sua verdadeira identidade? A ambiguidade do título, reforçando a dimensão de abertura, permite uma
dupla resposta e investe no ludismo como solução conclusiva. O futebol – o jeito brasileiro de brindar a vida, “
esse nada que preenche o mundo” (p. 218) –, une pai e filho num afeto quente e compartilhado. Atleticano fanático, o futebol “passou lentamente a ser para o Felipe uma referência de sua maturidade possível” (p. 219).

Acompanhando os passos do filho, o pai identifica as noções e qualidades possibilitadas pelo futebol: a primeira confirma uma noção de “personalidade”, “
incluindo aí o dom terrivelmente difícil de lidar com a frustração” (p. 219); a segunda caracteriza a noção de “novidade”, “não mais apenas alguma coisa que ele já sabe o que é e que vai repetir” (p. 219); a terceira implica a “socialização”: “o mundo se divide em torcedores e por eles é possível classificar as pessoas”; outra noção corresponde à idéia do tempo, proporcionada “pela noção de torneio” (p. 220); uma quinta noção, “outra pequena utopia que o futebol promete – a alfabetização” (p. 221). É interessante refletir sobre a importância do jogo/futebol como via de acesso ao mundo da leitura, pois, através dele, Felipe é “capaz de distinguir a maioria dos times pelo nome, que depois ele digitará no computador para baixar os hinos de cada clube em mp3, e que cantará, feliz, aos tropeços” (p. 221).

A imprevisibilidade é da natureza do jogo e disputar mais uma partida comunga dessa imprevisibilidade. Ao contrário do início do romance, quando o pai olha amargo e ressentido para o filho “mongolóide”, agora, chegado ao término do livro, o narrador confere a si e ao filho o dom do jogo da vida – liberta e imprevisível – bem como a possibilidade de abertura – maturação/amadurecimento – que só o tempo é capaz de proporcionar.

A linha cronológica da narrativa é trabalhada de forma que, ao passo que Felipe cresce, aprende andar, desenvolve a fala e inicia a vida escolar, o narrador nos conta passagens da adolescência do pai; assim, as principais mudanças de espaço ocorrem juntamente com as interrupções do tempo cronológico, que surgem toda vez que o pai faz uma reflexão sobre a própria vida, regredindo no tempo e no espaço, transportando-se para situações diversas, como a passagem por Portugal e pela a Alemanha, os trabalhos, os estudos, a infância em Santa Catarina, o grupo de teatro amador, o mestre guru e o primeiro amor vivido na ilha da Cotinga. Dessa maneira, o pai transita psicologicamente, entre o presente e o passado, e fantasia um futuro, onde cria algumas expectativas no leitor, em um período entre 03 de novembro de 1980 até 2006. Paralelamente, Felipe não tem essa noção do tempo “Incapaz e entrar no mundo da abstração do tempo, a idéia de passado e de futuro jamais se ramifica em sua cabeça alegre; vive toda manhã, sem saber, o sonho do eterno retorno.” (pág. 183).

Durante toda a narrativa, Felipe recebe estímulos para sua evolução motora e mental: a esperança do pai com isto é aproximar o filho da normalidade, uma conquista, que na verdade, sabe que será impossível.

A voz que narra não explicita o sentimento do pai pelo filho eterno, pois as suas emoções são contidas a ponto de fazer o leitor duvidar de seu amor por Felipe. Todavia, na passagem do texto, onde o menino desaparece fica evidente o amor do pai pelo filho, expresso no desespero, na angústia e no medo de perder Felipe, que um dia desejou que morresse “
Só descobriu a dependência que sentia pelo filho no dia em que Felipe desapareceu pela primeira vez... ainda em pânico... que agora lhe toma por inteiro, a pior sensação imaginável na vida – quase a mesma sensação terrível do momento em que o filho se revelou ao mundo, da qual ele jamais se recuperará completamente...” (pág. 161), embora ele próprio não admita isto “Esse é o retrospecto desenhado com calma quase vinte anos depois. No momento, tudo é de uma banalidade absurda...” (pág. 161).

Como desfecho dos conflitos internos do pai, há a superação do desequilíbrio emocional, ocorrido com o nascimento de Felipe, que é constatada quando pai e filho compartilham, de forma carinhosa, a uma partida de futebol na televisão.


Este livro me encantou! É uma boa dica de leitura pra quem se interessar por casos de pessoas com algum tipo de deficiência, a reação da família, o pai, a mãe e muitos mais.