O Filho Eterno, de Cristóvão Tezza, foi publicado na categoria de "romance
brasileiro", mas é um texto escancaradamente autobiográfico.
Como o protagonista de seu romance, o autor tem um filho com síndrome de Down.
O livro não disfarça o caráter de acerto de contas do escritor com seu filho –
ou, melhor dizendo, consigo mesmo no papel de pai desse filho. Ainda assim,
Tezza rejeita o rótulo de memorialismo para ficar com o de romance: a narração
é toda em terceira pessoa, por exemplo.
A obra se afigura como uma brilhante reflexão sobre a necessidade e a
importância da ação do tempo para operar o ciclo da aturação/amadurecimento.
Este ciclo se justifica porque plasma duas variáveis significativas de um
problema que a crítica literária tem, ao longo de sua história, tratado de
forma dicotômica: o narrador e o autor, o sujeito real e o personagem, o
escritor e o protagonista, ou ainda, quaisquer outros aportes demonstrativos
que se queira dar para separar o homem que escreve da ficção que ele escreve.
Assim, o romance abre caminhos inovadores para que se discuta a tão famigerada
relação entre vida e obra, autobiografia e ficcionalidade, como se a ficção
pudesse, de per se abdicar da história ou como se a realidade não pudesse adentrar
os labirintos da subjetividade vital por considerá-la, aprioristicamente, o
reino positivista da neutralidade.
Dividido em vinte e cinco capítulos, não numerados, o romance é introduzido por
duas epígrafes significativas: a primeira, de Thomas Bernhard, apresenta o
conflito entre o desejo pela descrição fiel da verdade e o resultado dessa
descrição; a segunda, de S. Kierkegaard, aponta a reflexão especular entre pai
e filho,
tema de que se ocupa o livro em suas duzentas e vinte e duas páginas: as vicissitudes,
o calvário e as amarras de um jovem escritor ao receber a notícia de que
seu primeiro filho era portador da Síndrome de Down e a peregrinação vital em
torno desse fato até sua liberta aceitação.
Antes mesmo de iniciar a leitura, somos informados de que o romance tem como
ponto de partida as memórias do escritor Cristovão Tezza, e, ele mesmo, na
epígrafe, deixa claro que memórias são essas. Uma história baseada em fatos
reais que não tem pretensão de ser a verdade. É a história do relacionamento de
pai e filho – e, pela orelha do livro, somos informados de que se trata de um
relacionamento com "dificuldades, inúmeras, e as saborosas pequenas
vitórias". Além disso, trata-se de um "livro corajoso" – o
escritor é considerado corajoso ao relatar parte de sua vida, ao expor sua
família e sua intimidade.
O Filho Eterno é uma narrativa seca de desencantamento, em terceira pessoa, onde os
personagens não têm nome, com exceção do filho, Felipe, e são chamados de
"ele", "o pai", "a mulher", "a mãe",
"a filha", "a irmã". Mesmo Felipe frequentemente aparece
como "o filho" em contraposição ao "pai". Não encontramos o
lugar-comum, o apelo ao sentimento de pena e empatia, e, isso é uma das
qualidades de uma história que prende o leitor por não fornecer respostas e
soluções óbvias, pelo contrário, a surpresa é uma constante durante a leitura.
Percorre-se a trajetória do personagem pai e, dentro de sua história,
acompanha-se a trajetória do personagem filho, Felipe. O treinamento
neurológico nos primeiros anos de vida do filho é contrastado com o
'treinamento' do pai em relação às tentativas de publicar seus livros e as
recusas das editoras:
Eu também estou em treinamento, ele pensa, lembrando mais uma recusa de
editora. A vida real começa a puxá-lo com violência para o chão, e ele ri
imaginando-se no lugar do filho, coordenando braços e pernas para ficar em pé
no mundo com um pouco mais de segurança(p. 130).
O crescimento e o desenvolvimento do filho são percebidos pelo pai nas
representações de papéis sociais que o filho se esforça em cumprir (p. 211). Ao
mesmo tempo, o pai descobre a alegria que a rotina traz e a tranquilidade
conquistada com papéis sociais como "o professor universitário",
"o escritor".
"O pai começa a descobrir sinais de maturidade no seu Peter Pan e eles
existem, mas sempre como representação" (p. 218). O espelho no qual ambos, pai e filho, se veem é o
espelho que reflete a representação dos papéis sociais. A percepção de
mimetismo social no filho não está muito distante dos papéis que o pai é
solicitado a cumprir socialmente na universidade, na família, na escola do
filho, no campeonato de natação e na apresentação de teatro do filho. A
dificuldade do pai é tão grande quanto a dificuldade do filho. A criança que
vive eternamente no presente aprende a responder ao que é solicitado dela
socialmente. O pai provisório, que só pensava em viver o presente, também
aprende. E aqui é revelado o escritor por trás da narrativa. A sutileza ao
contar os episódios na vida do pai e do filho é alcançada no contar da história,
pois não há momentos de avaliação e reflexão em que paralelos são
explicitamente estabelecidos. Esse trabalho é reservado ao leitor.
Há no romance de Tezza a preocupação em não deixar o leitor "morrer de
repente", ou não abandonar o texto.
A narrativa de O filho eterno inicia sob o signo da construção, melhor dizendo, de duas construções:
do pai-narrador-escritor e do filho-personagem-narrado.
Há uma partogênese significativa envolvendo o nascimento e criação do filho e
deslocando-se para o nascimento do escritor e o ato da escritura. As marcas
vitais conjugam-se nas palavras do próprio autor: “romance brutalmente
autobiográfico”. A despeito das dificuldades romanescas atribuídas ao gênero
autobiográfico, o livro furta-se ao mero assédio confessionalista porque o
autor – experiente e exigente quanto às técnicas literárias – soube optar pela
utilização de um ponto de vista revelador.
Narrando em 3ª pessoa, ao invés da 1ª pessoa do singular, Tezza – com esse
hábil expediente de foco narrativo – forjou uma nova indumentária para o
romance autobiográfico e, muito embora os poros da vida refluam do corpo do
texto, a essência do mesmo – sua alma – ainda continua sendo a ficção.
O enredo gira em torno de duas personagens principais: pai e filho. As outras
personagens apresentadas no romance são secundárias, inclusive a mãe, que
apesar de ser a primeira personagem apresentada pelo narrador através de sua
própria fala “- Acho que é hoje – ela disse.” (pág. 9), é pouco mencionada durante a obra. O narrador utiliza os
pronomes “ele” e “ela”, para se referir aos pais e à irmã de Felipe, o único
personagem com nome declarado. Quando se trata da relação de afeto com um
filho, e principalmente, quando este apresenta uma anomalia, espera-se que a
figura da mãe tenha destaque, porém, no romance é a paternidade que é
enfatizada.
A abertura do romance dá conta da voz da esposa anunciando ao pai a
chegada iminente do filho, ao mesmo tempo em que vai construindo a figura desse
pai-narrador, através de um discurso amparado em termos que expressam dúvidas,
incompletudes e indefinições: “Alguém provisório, talvez;
alguém que, aos 28 anos, ainda não começou a viver. [...] ele não tem nada, e
não é ainda exatamente nada”. (p. 9). Descreve-se como um “filhote retardatário dos
anos 70”,
e se vê como um poeta cafona, gorado em sua profissão, sustentado pela esposa
que sobrevive de aulas particulares e revisões textuais de “teses
e dissertações de mestrado sobre qualquer tema” (p. 12).
O Pai é personagem introvertido, ansioso, que tem dificuldades para demonstrar
seus sentimentos. Um homem de vinte e oito anos, que bebe e fuma
compulsivamente. Vê a solidão como um projeto de vida, para assim demonstrar
sua aversão à sociedade, e a literatura como fuga da realidade. Pode ser
definido como: “... o eterno observador de si mesmo e dos
outros. “Alguém que vê, não alguém que vive.” (pág. 98). Um militante sem causa, um escritor
sem projetos realizados que não consegue viver de seu próprio trabalho.
Felipe é apresentado pelo narrador pelas características de um portador de
síndrome de down: “... algumas características... sinais
importantes...vamos descrever: Observem os olhos, que tem as pregas nos cantos,
e a pálpebra oblíqua...o dedo mindinho das mãos, arqueado para dentro...achatamento
da parte posterior do crânio...a hipotonia muscular...a baixa implantação da
orelha e...” (pág. 30). Segundo o pai: “é uma pedra silenciosa no meio do caminho”
(pág. 112).
O narrador invade os pensamentos do pai testemunhando todos os acontecimentos
de sua vida, de forma invisível está presente em todos os cenários da
narrativa, assim expõem ao leitor, os sentimentos, as emoções e as aflições de
criar um filho com necessidades especiais em uma época que pouco se sabia sobre
a Síndrome.
Ainda no 1º capítulo, após ironizar suas “romantiquices” literárias –
publicaria, na Revista de Letras, o poema "O filho da primavera" –,
deixa claro que “um filho é a idéia de um filho”; e que, nem sempre, “as
coisas coincidem com as idéias que fazemos delas” (p. 14). Tal
inconformismo entre o sonho e a realidade
reflete a via-crucis desse Édipo andarilho: recuando no tempo, há apenas dois
meses passados, percebe a relação irônica e mordaz entre uma dissertação
corrigida para um amigo, na área de genética, cujo tema versava sobre as
características da trissomia do cromossomo 21, a síndrome de Down, popularmente
conhecida como “mongolismo”, e o fatídico acaso que o presente lhe reservava:
um filho portador dessa mesma síndrome.
O destino não o fez cegar os próprios olhos, mas o narrador admite que a morte
do menino seria um alívio e o ódio furioso que o acomete fica explícito quando
se nega “bovino, a ver e a ouvir” (p. 31). Focando a parafernália familiar e hospitalar, característica
do nascimento de bebês, o narrador estabelece uma relação com os rituais dos
sacrifícios religiosos e aponta o caráter de encenação/representação de papéis
tanto dos pais, quanto dos médicos e enfermeiros.
Assim, os primeiros capítulos exploram as reações adversas do pai e marido – “Eu
não preciso deste filho”; “Eu também não preciso desta mulher” (p. 32) – as quais, num crescendo de
inconformismo, apelam para registros discursivos dilacerados de vazio e
solidão. O menino, que o leitor vem a saber, posteriormente, tratar-se de
Felipe, é, no início, designado como “pacotinho suspirante”, “a coisa”, “aquela
criança horrível”, “esse”, “simulacro de normalidade”, enfim, nominações que
levam o narrador a concluir que é um “escritor sem obra, [...] e
agora pai sem filho” (p. 41). Entretanto, a brutalidade com que questiona a “anormalidade”
do filho volta-se, especularmente, como reflexão sobre a própria normalidade.
No 7º capítulo, o narrador se detém na discussão científica a respeito das
características da trissomia do cromossomo 21, porém as contingências do fato,
quando relacionadas ao filho, não o impedem de considerar-se num abismo. Ao
reler um poema engajado, de sua autoria, – “escrito anos antes, numa
pensão em Portugal, em seus tempos de mochileiro” (p. 49) – trazido por seu
irmão, a pretexto de consolá-lo, analisa-o com olhar crítico, tributa-o como “simulacro
de
poesia” (p. 51). Entretanto, os versos iniciais servirão como uma espécie de
mote do destino para iluminar reflexões posteriores: “Nada
do que não foi/ poderia ter sido” (p. 50).
A partir da certeza genética a respeito do filho e do ressentido vazio familiar
– “Três estranhos em silêncio. Não há o que abraçar” (p. 66) –, tem início a
peregrinação em busca de clínicas especializadas em programas de estimulação e consequentes exercícios de reabilitação. O leitor é informado tanto sobre as
deficiências específicas que acometem os portadores de tal síndrome – em termos
de visão, audição, tato, linguagem, relações sexuais –, quanto sobre as
limitações que os ditos “normais” têm no trato com essas pessoas: “(elas
ouvem a palavra ‘não’ milhares de vezes a mais do que qualquer pessoa normal)” (p. 167). Se,
didaticamente, há uma descrição de como é possível o processo de auxílio e
recuperação de crianças como Felipe, do ponto de vista narrativo, essa didática
é amparada e ultrapassada pelas reflexões sobre as relações entre o pai e o
filho, o ser e o tempo, o homem e suas circunstâncias, a essência e a
aparência, o sentir e o dizer, o acaso e as escolhas, o autor e o leitor, o ato
de escrever e a possibilidade de realização. A educação de Felipe é, em
contrapartida, a educação do pai em busca de si mesmo.
No 20º capítulo, ao narrar o desaparecimento de Felipe, faz um retrospecto
dessa fuga e, retornando ao momento de seu nascimento, associa e equipara as
sensações como se fossem “o sentimento do abismo” (p. 161). A possibilidade da
perda do filho permite ao narrador avaliar o valor desta perda: o desabamento
provocado pela solidão: “Não se mova, que dói” (p. 161). A relação autobiográfica
em O Filho Eterno, também se consolida na descrição correspondente ao processo de criação
e publicação de outros romances de Cristovão Tezza, como é o caso de Terrorista
lírico, Trapo, A
cidade inventada e Ensaio da paixão, “o primeiro acerto de contas com a própria vida, antes do filho” (p. 116).
Enfim, quem é esse filho eterno? É Felipe, eternamente menino, na fatídica
vivacidade de sua inocência canhestra, ou é o pai – Édipo andarilho – a
procurar,
numa encruzilhada sem destinos programados pelos deuses, sua verdadeira
identidade? A ambiguidade do título, reforçando a dimensão de abertura, permite
uma
dupla resposta e investe no ludismo como solução conclusiva. O futebol – o
jeito brasileiro de brindar a vida, “esse nada que preenche o
mundo”
(p. 218) –, une pai e filho num afeto quente e compartilhado. Atleticano
fanático, o futebol “passou lentamente a ser para o Felipe uma
referência de sua maturidade possível” (p. 219).
Acompanhando os passos do filho, o pai identifica as noções e qualidades possibilitadas
pelo futebol: a primeira confirma uma noção de “personalidade”, “incluindo
aí o dom terrivelmente difícil de lidar com a frustração” (p. 219); a segunda
caracteriza a noção de “novidade”, “não mais apenas alguma coisa que ele já sabe o
que é e que vai repetir” (p. 219); a terceira implica a “socialização”: “o mundo se divide em
torcedores e por eles é possível classificar as pessoas”; outra noção
corresponde à idéia do tempo, proporcionada “pela noção de torneio” (p. 220);
uma quinta noção, “outra pequena utopia que o futebol promete – a
alfabetização” (p. 221). É interessante refletir sobre a importância do jogo/futebol
como via de acesso ao mundo da leitura, pois, através dele, Felipe é “capaz
de distinguir a maioria dos times pelo nome, que depois ele digitará no
computador para baixar os hinos de cada clube em mp3, e que cantará, feliz, aos
tropeços”
(p. 221).
A imprevisibilidade é da natureza do jogo e disputar mais uma partida comunga
dessa imprevisibilidade. Ao contrário do início do romance, quando o pai olha
amargo e ressentido para o filho “mongolóide”, agora, chegado ao término do
livro, o narrador confere a si e ao filho o dom do jogo da vida – liberta e
imprevisível – bem como a possibilidade de abertura – maturação/amadurecimento
– que só o tempo é capaz de proporcionar.
A linha cronológica da narrativa é trabalhada de forma que, ao passo que Felipe
cresce, aprende andar, desenvolve a fala e inicia a vida escolar, o narrador
nos conta passagens da adolescência do pai; assim, as principais mudanças de
espaço ocorrem juntamente com as interrupções do tempo cronológico, que surgem
toda vez que o pai faz uma reflexão sobre a própria vida, regredindo no tempo e
no espaço, transportando-se para situações diversas, como a passagem por
Portugal e pela a Alemanha, os trabalhos, os estudos, a infância em Santa
Catarina, o grupo de teatro amador, o mestre guru e o primeiro amor vivido na
ilha da Cotinga. Dessa maneira, o pai transita psicologicamente, entre o
presente e o passado, e fantasia um futuro, onde cria algumas expectativas no
leitor, em um período entre 03 de novembro de 1980 até 2006. Paralelamente,
Felipe não tem essa noção do tempo “Incapaz e entrar no mundo da abstração do
tempo, a idéia de passado e de futuro jamais se ramifica em sua cabeça alegre;
vive toda manhã, sem saber, o sonho do eterno retorno.” (pág. 183).
Durante toda a narrativa, Felipe recebe estímulos para sua evolução motora e
mental: a esperança do pai com isto é aproximar o filho da normalidade, uma
conquista, que na verdade, sabe que será impossível.
A voz que narra não explicita o sentimento do pai pelo filho eterno, pois as
suas emoções são contidas a ponto de fazer o leitor duvidar de seu amor por
Felipe. Todavia, na passagem do texto, onde o menino desaparece fica evidente o
amor do pai pelo filho, expresso no desespero, na angústia e no medo de perder
Felipe, que um dia desejou que morresse “Só descobriu a dependência
que sentia pelo filho no dia em que Felipe desapareceu pela primeira vez...
ainda em pânico... que agora lhe toma por inteiro, a pior sensação imaginável
na vida – quase a mesma sensação terrível do momento em que o filho se revelou
ao mundo, da qual ele jamais se recuperará completamente...” (pág. 161), embora ele
próprio não admita isto “Esse é o retrospecto desenhado com calma quase
vinte anos depois. No momento, tudo é de uma banalidade absurda...” (pág. 161).
Como desfecho dos conflitos internos do pai, há a superação do desequilíbrio
emocional, ocorrido com o nascimento de Felipe, que é constatada quando pai e
filho compartilham, de forma carinhosa, a uma partida de futebol na televisão.
Este livro me encantou! É uma boa dica de leitura pra quem se interessar por casos de pessoas com algum tipo de deficiência, a reação da família, o pai, a mãe e muitos mais.